quinta-feira, 26 de abril de 2012

Cotas Sim!


Hoje será um dia histórico para o Brasil, pois o Supremo Tribunal Federal (STF) julgará constitucional a política das cotas nas universidades públicas do país. Com esse medida, que já vigora no país desde 2003, mais estudantes negros terão acesso ao ensino superior, algo impensável em tempos não tão distantes assim. Se tudo correr como se espera, essa discussão, pelo menos no âmbito jurídico, se encerra por hoje.

O que choca são as falácias, os argumentos toscos de quem é contra as cotas. Ver manifestações de boçais como o deputado Jair Bolsonaro e o senador Demóstenes Torres, este que é contra não só as cotas, mas contra o Prouni, e outros, proferindo absurdos sem pé nem cabeça, sobre algo que continuará permitindo que negros possam frequentar as mesmas universidades que brancos 'criados a leite de pera' (ou alguém tem dúvida de que o que mais existe nas universidades públicas são brancos endinheirados?) é de virar o estômago.

A representante contrária às cotas, Roberta Kauffman, também advogada do DEM, afirmou no STF que "a questão que se coloca não é superficial. Se você não tem um critério objetivo para decidir quem é negro, quem é pardo, quem é moreno, as cotas podem ser mais desastrosas do que os eventuais bônus que a política deve ocasionar". Esse argumento serve para desvirtuar a discussão central, que é garantir o acesso de negros ao ensino superior, e atenuar erros históricos cometidos ao longo de anos e anos de escravidão.

Pior ainda é ver que existem pessoas com mentalidade tão tacanha, que dizem, por exemplo, que "não gostaria de ser atendido por um médico cotista" quando fosse obrigado a ir a um hospital, pelo simples fato de o médico ter sido beneficiado pela cota, e por isso, supostamente, não ter a mesma qualidade de um médico não cotista. Para derrubar esse sofisma, basta  observar que a cota tem como finalidade garantir o ingresso dos negros na universidade. A partir daí, se ele não obtiver boas notas e apresentar bons resultados em seus estudos, arcará com as mesmas consequências de qualquer outro estudante que não é cotista. Está aí, mais um argumento rebatido sem maiores dificuldades.

Outros são contra as cotas porque argumentam, descaradamente, que não há racismo no Brasil, logo não há sentido em se privilegiar determinada raça. Se alguém disser que o racismo não existe, e que considera todos iguais, comete dois erros crassos: nega algo que é um fato concreto, pois racismo existe (só quem pode falar se o racismo existe ou não é quem já sofreu ou ao menos presenciou; do contrário, é tão somente opinião sem fundamento), e que não há a igualdade mencionada na Constituição brasileira. Basta observar , com isenção, a realidade social do país. Tentando explicar de outra forma, o fato de alguém não ser racista, não torna o mundo ao seu redor também não racista. Quem não enxerga algo tão claro, deve pegar o próximo disco voador com destino à Terra e ficar a par do que se passa ao seu redor.

Dados do IBGE no Censo 2010 comprovam que o salário médio de um funcionário branco é quase 100% maior do que o de um funcionário negro na mesma função. De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), os negros são maioria entre os pobres (65%), porcentagem que aumenta entre os indigentes (70%). E agora, você ainda acredita que somos todos iguais? É por essas e outras que o blog, desde já, e enquanto for necessário, abraça essa causa: Cotas Sim!

Atualizado às 21:10: O STF, por unanimidade, julgou constitucional a política das cotas, a despeito das vontades de boa parte da 'grande' mídia (os lixos habituais: Globo, Veja, Folha) e da elite dominante.

@Marcelo_Montana

#CotasSim


segunda-feira, 2 de abril de 2012

O filme do Raul e algumas impressões

Não é segredo para ninguém que este blogueiro é fã, desde que se conhece por gente (provavelmente até antes disso) de Raul Seixas. Por influência do meu pai, ouço Raulzito desde o berço, o que fez com que eu aprendesse rapidamente todas as suas músicas, de todos os álbuns. Isto posto, o que se segue é, mais do que o relato de um fã incondicional do maluco beleza, a impressão que se tem quando se assiste a imagens inéditas, raras, e entrevistas com figuras que fizeram parte da trajetória artística de Raul. E , na sequência, faço alguns registros sobre o artista, sob a ótica estritamente pessoal, sem qualquer pretensão de parecer isento ou imparcial.

Neste fim de semana, tive a oportunidade de assistir o documentário "Raul - O Início, o fim e o meio", de Walter Carvalho. Antes de mais nada, deixo claro que será difícil dissociar um elogio de um fã como este blogueiro de um simples comentário favorável ao filme, que, por sinal, é ótimo. Em que pese a ausência de figuras importantes na carreira de Raulzito, como Jerry Adriani, que o trouxe para o Rio de Janeiro depois de vê-lo tocar lá na Bahia, o filme contém depoimentos, nem sempre agradáveis, de todas as ex-mulheres (Edith, Gloria, Tania, Kika e Lena, em ordem cronológica), suas filhas (Scarlet, Simone e Vivian), sem contar do irmão Plínio (para quem Raul compôs e gravou "Meu Amigo Pedro"), e boas surpresas, como Tom Zé e Caetano Veloso, desafeto de Raul, mas reconhecedor da importância dele num momento conturbado da vida política brasileira, os companheiros Panteras (Mariano, Carleba e Eládio), Cláudio Roberto (parceiro em algumas de suas composições mais famosas, como "Maluco Beleza" e "O Dia em que Terra parou"), e participações que não poderiam ficar de fora, como o parceiro dos maiores sucessos, Paulo Coelho, e aquele que lhe deu a oportunidade de voltar aos palcos, depois de quatro anos recluso, pouco antes de morrer, Marcelo Nova.

Embora grande parte do filme conte histórias que quem acompanha o artista já conhecia ao ler livros a seu respeito, houve espaço para informações desconhecidas pela maioria, como o vício de Raul em cheirar éter, já no ocaso de sua vida, ou o uso recorrente de cocaína. Imagens raras deixam os espectadores maravilhados, como ele em estúdio gravando "Mosca na Sopa", no Hollywood Rock de 1975, e a famosa entrevista logo após seu carro ser atingido e danificado na orla de alguma praia carioca por ondas gigantes decorrentes da ressaca do mar, quando, ao ser perguntado o que achou do acontecido, Raul, com tranquilidade e desapego, afirma que "a natureza está certa". Esse era Raul, aquele que passava uma mensagem em todas (sem exceção) as suas canções. Poderia ser uma crítica contundente à sociedade contemporânea (Ouro de Tolo, Sociedade Alternativa, Maluco Beleza, Cambalache, Você, S.O.S), ao matrimônio e a monogamia (Medo da Chuva, A Maçã), à religião, a igreja e ao Juízo Final (Judas, How Could I Know, Baby, Ilha da Fantasia, Pastor João e a Igreja Invísivel, Cowboy Fora da Lei, Trem das Sete), à família (Sapato 36) ao Brasil desde 1500 até os seus dias (Aluga-se, Movido à Alcool, Não Fosse o Cabral, Só Pra Variar), enfim, a tudo aquilo que em sua visão merecesse ser comentado e/ou criticado, lá ia ele compor e cantar sua indignação.

Raul, o primeiro que misturou o baião de Genival Lacerda com o rock de Elvis, cantava bolero, tango, blues, rock, samba (sim, samba). Cantava o brega, mas sem sê-lo (Tu És o MDC da Minha Vida, talvez a melhor música brega de todos os tempos). Cantava também o amor como poucos: o que se pode dizer de canções como Sim, Coração Noturno, O Segredo da Luz, Mata Virgem, Lua Cheia e Sunseed, verdadeiras obras primas não reconhecidas como tal, daquelas que tocam o coração e a alma. Cantou a morte, que detestava e amava, e cuja vinda aguardava sem pressa ("vem, mas demore a chegar"), tão lindamente, que ela passou a não parecer o mais terrível dos males. O complicado para a maioria das pessoas, se tornava menos díficil de se compreender nas palavras de Raulzito.

Até na hora de se despedir, Raul reconhece que seu momento já havia chegado ao fim ("eu vou, eu vou me embora, apostando em vocês, meu testamento deixo minha lucidez, vocês vão ter um mundo bem melhor que o meu", na canção 'A Geração da Luz', de 1984; ou em 'Banquete de Lixo', quando diz "meu amigo Marceleza (referindo-se à Marcelo Nova) já me disse com franqueza: 'não sou nenhuma ficção', e assim torto de verdade, com amor e com maldade, um abraço e até outra vez". Se hoje vivemos em um mundo um pouco melhor, Raulzito contribuiu grandemente. Pois não era ficção; era real, verdadeiro, visceral, vomitando frases que, em um primeiro momento, pareciam não ter sentido, mas analisando melhor, era justamente aquilo que todos queríamos dizer, em algum momento de nossas vidas. Ele, que no seu auge passou a ser cultuado como um Messias (Raul recusava categoricamente esse rótulo), depois que partiu, passou a ser tão ou mais adorado do que em vida. Não por aqueles chatos bebâdos que gritam o insuportável "Toca Raul!!" em qualquer lugar onde há um banquinho e um violão, mas por quem compreende, mesmo que minimamente, seu legado de indignação e inconformismo, que tanto sofreu por isso. Pena, para ele, que não tenha nascido burro, assim não teria sofrido tanto; mas sorte de uma enorme legião de fãs e seguidores, que puderam usufruir, cantarolando, sorrindo e chorando, da sua música.